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quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sapatão ou Lésbica aparando arestas

sapatão” ou “lésbica”? sobre rótulos políticos, estigmas e ressignificações

Posted: 06 Jul 2010 07:07 PM PDT

por Tate em cotidiana
cotidiana 33, junho de 2010

oi diária meio coletiva, porque lida por muitas!

faz umas semanas que não tenho tempo pra escrever, mas fiz um esforço nesse domingo derradeiro de junho. hoje tivemos reunião da coturno de vênus e falando sobre o tema do mês da visibilidade lésbica surgiu uma conversa sobre os motivos que afastam algumas mulheres da palavra “sapatão”…

vocês lembram de uma expressão que eu mesma não ouço há um tempo, mas é bem comum, usada pra dizer que alguma coisa até parece que mudou, mas no fundo continua a mesma: “trocou seis por meia-dúzia”? é maizomenos o que tenho sentido e pensado com relação à fingida dicotomia “sapatão” e “lésbica.

sapatão é um desses termos que são usados com caráter pejorativo, de ofensa, como “fancha/fanchona” (muito usado no sudeste), “roçona” (nordeste) e “mulher macho” (onde esse é usado?). leitoras, onde vocês moram qual é a palavra usada pra se referir a lésbicas, só que com esse caráter de xingamento?

na reunião da coturno, lembramos de temas antigos de caminhadas em anos passados… um dos temas foi “lésbica: rótulo político” (2007). tenho percebido que aqui no DF, nós lésbicas de/em movimento temos usado a palavra sapatão nesse mesmo sentido, pra transformá-la num rótulo político e ressignificá-la.

acho que isso acontece muito em movimentos identitários, como é o movimento de lésbicas, o lgbt, o negro, o de pessoas com deficiência… nos apropriamos de um termo que era usado pra nos classificar de maneira negativa, ou propomos algum que nos defina a nós mesmxs: somos negras, somos lésbicas, somos…

penso em ellen oléria cantando, na música antiga poesia, “o meu desejo é que o seu desejo não me defina”. chega de sermos anunciadas/faladas/classificadas pelo outro, muitas vezes opressor, nós mesmas nos anunciemos, nos pronunciemos, nos declaremos. porque a palavra cria mundos, não só formas de interpretá-los.

e o outro opressor quer nos transformar em outras. quer reduzir nossos desejos, nossos afetos, nossas pulsações e mergulhos e experiências e existências a rótulos que nos envergonhem de sermos quem somos, de amar como amamos, de vestir como vestimos. chama de sapatão pensando que isso nos xinga.

sim, lésbica é um rótulo político, histórico, que evoca a ancestralidade de nossa existência de afeto entre, para e com mulheres, e é o termo que temos usado pra dizer que não somos “mulheres-gays”, pois gay diz de uma experiência específica, se refere a um outro grupo social em movimento, em luta… mas não o nosso.

mas me pergunto quais as motivações que justificam deixarmos o uso da palavra sapatão restrito a quem quer nos definir por exclusão e negativamente. tenho percebido que nos meios lesbian chic se dizer não-sapatão significa se dizer não-pobre, não-“masculinizada”, não-caminhoneira. “feminina”, enfim.

me parece um uso classista, de uma elite lésbica. que não quer ser comparada à experiência da lesbiandade tida como intolerável, vulgar, periférica… tenho medo que a lesbian-chic possa ser não só uma expressão de vestuário, de estilo de vida, mas uma expressão que nega e oprime as possibilidades de outras experiências e existências.

se aceitamos que “sapatão” = masculinização e “lésbica” = feminilização, estamos aceitando todo o heterossexismo que separa corpos de acordo com categorias e expectativas determinadas por papéis sexuais esperados. isso é grave se aparece como heteronormatização dos encontros lesbianos:

se sapatão vira = ativa que vira igual à função entendida como a dos homens (conquistar, penetrar, gozar), e lésbica vira = passiva e vira igual à função entendida como a das mulheres (seduzir, ser penetrada, dar prazer). a lesbiandade pode ser muito mais que a fixação de papéis sexuais na sociedade ou na cama!

(uma dúvida, diária: nessas relações com muita rigidez de papéis, o que acontece com o 69?)

e inclusive pode ser sapatonice. pode ser uma mulher que consideramos “muito feminina” ser muito sapatão, independente de estar vestindo calças ou vestidos ou estar chupando ou sendo chupada. sapatão é um rótulo político que cabe pra qualquer uma que queira usá-lo.

pode significar muito mais que esse ou aquele tipo de roupa, conduta sexual, distribuição de papéis sexuais… pode ser que não importa se criaram esse nome pra ofender, pra xingar, pra que a gente tenha vergonha de como somos e vivemos. agora esse nome é nosso e falamos de boca cheia:

somos, sim, caminhoneiras lésbicas sapatonas fanchonas roçonas

sendo o que nosso desejo define, e não o que um desejo alheio quer, espera e insiste pra que sejamos. ser eu mesma do umbigo pra fora, e não alguém que se espera de fora pra dentro. nada que caiba simplesmente numa saia, num corte de cabelo, num suvaco sem depilar. tem a ver com isso também, mas isso é só acessório.

e acessório a gente muda como muda a alma de uma palavra. só que com a palavra, mudando a alma, muda a carne.

(a imagem que ilustra a coluna de hoje é a pintura “69” da artista plástica pao raffetta, cuír, feminista, entusiasta de software livre, natural de argentina. mais trampos lindos dela em sua vernissage digital. e uma beija na minha galáxia, que ajudou na busca de imagens justamente por atrapalhar, rerrerrerre)
Fonte: www,paradalésbica.com.br
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